por Alexandre Filordi (EFLCH/UNIFESP)
Em As palavras e as coisas, Michel Foucault (foto abaixo) argumentou que determinados acontecimentos históricos forjaram os contornos precisos de como, no Ocidente, trabalhamos, vivemos e falamos, espécie de espelho embaçado de nossa consciência. Foucault conclui a obra com a elegante aposta: “Se estas disposições viessem a desaparecer tal como apareceram, se, por algum acontecimento, de que podemos quando muito pressentir a possibilidade, mas de que no momento não conhecemos ainda nem a forma nem a promessa, se desvanecessem – então se pode apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto de areia”.
Talvez a pandemia do COVID-19 seja a passagem ao ato de nosso rosto desaparecendo na areia. É bem provável, embora apenas estejamos pressentindo, que as condições e os modos históricos de como concebíamos a vida, as relações de trabalho e a consciência em torno de nossa finitude e de nossas relações sociais alterem-se por completo. E possivelmente, aqui, a educação esteja cometendo equívocos.
A pandemia é um labirinto profundo. Não sabemos quando dela sairemos, nem com quais consequências e alcances sociais. É fato, contudo, que alguns aspectos emergiram incontestes, dentre eles: o erro de se pensar que o Estado era dispensável; que neoliberalismo nos olhos dos outros é refresco – de repente, por exemplo, os EUA se tornaram ultraprotecionistas; percebemos que o capitalismo possui um teto de vidro bem baixo, além de frágil; vimos que a condição humana é mais delicada do que supunha a “vã” tecnologia, inclusive com mais vulneráveis do que a grande mídia expunha; enfim, tivemos a contraprova de que as pessoas, de carne e osso, são importantes para a nossa sanidade, alegria, projetos, sonhos, luto, luta etc. O que isso, porém, diz respeito à educação?
Em tempos de quarentena, o privatismo que assola a educação básica e superior no Brasil se vê forçado a continuar com suas atividades, claro está, porque se considerada um prestador de serviço. Se não há prestação de serviço, qual a razão de se pagar por ele? Eis uma armadilha. Ademais, muitas dessas instituições são cifras rentáveis na Bolsa de Valor. Nesse caso: educar = lucrar.
Mas educadores não prestam serviço, tampouco são corretores mercantis. Educadores são cúmplices com a vida, com seus desafios, com suas transformações, sua história, ou seja, com as conquistas, os erros, os fracassos e os desafios da longa história humana. Educadores são minas de novos desejos para novos tempos; eles não podem ser papagaios, ainda que bem treinados, a repetir o que diz a apostila ou o livro – eles criam pulsões de vida para além de qualquer índice; eles desenham novos horizontes, com a própria vida, para os que estão entrando na vida. No privatismo, entretanto, a educação quase sempre se reduz a um propósito comercial, lucrativo, objetivado, logo, não se pode parar.
O curioso são as mentalidades que acabam sendo sequestradas pelo privatismo quando deveriam combatê-lo. Elas estão, inclusive, na arena pública. Em algumas Universidades Públicas, agora, mostram-se os dentes os burocratas de plantão, às vezes raivosos, dizendo: “não podemos parar!”; “O ensino não pode parar!”. São homens ocos, como disse Rilke. Errado: temos de parar. O tempo nos impõe o estio: paremos! Por quê? Porque precisamos nos distanciar das mesmas demandas, vistas com os mesmos óculos epistemológicos e negociáveis. Já não seremos os mesmos homens e as mesmas mulheres; precisamos parar com a livecização fútil e banal do conhecimento, como se todos tivéssemos respostas para tudo. Temos de ruminar novas respostas que não surgem da noite para o dia; precisamos fazer da parada uma crítica ao doentio sistema capitalista. Este sistema que ocupa nossos afetos, energias, percepções 24h/7 dias; que parasita e vampiriza as relações humanas, reduzindo-as aos protocolos. É necessário ainda recalibrar os valores da vida. Isso não se faz continuando com o que não se sustenta mais: velhas práticas perante um mundo que, doravante, sequer conhecemos: “nem a forma nem a promessa”, como argumentou Foucault.
E mais, é forçoso parar para não sermos cúmplices dessa exposição comunicacional que agencia controle de nossas ações e desejos (vide Eterna Vigilância, de Edward Snowden ou The Shallows – What the internet is doing to our brains, de Nicholas Carr); precisamos parar para denunciar que na educação básica, o investimento por aluno nas instituições públicas brasileiras é em torno de US$ 3,800.00, menos da metade da média dos países da OCDE – US$ 9,300.00, a despeito dos mais de 5% de investimento do PIB em educação, logo, insuficientes. Aliás, isso denuncia que o Brasil é um país desigual e injusto; com demandas profundas, acompanhadas, ao longe, por uma elite sem remorso e escrúpulo com tal injustiça. Afinal, seus filhos estão nas escolas privadas.
As instituições privadas de ensino negociável deveriam parar, assim, assumindo, de fato, um papel social e crítico: reconhecer que são cúmplices na desigualdade e na injustiça social. O calendário escolar – todo ele – deveria parar: ciclos, etapas, vestibular, ENEM etc. Ora, mas que loucura, até quando? Até nos darmos conta que não seremos mais os mesmos; que não podemos continuar mais os mesmos; que educar não é um negócio! Se alguém perguntar, porém, mas quem pagará a conta? É porque já se quer continuar sendo o mesmo, vislumbrando um mundo no qual já não deveria habitar de modo igual ao que era.
Seria o momento para a educação estimular o ócio criativo, artístico, sensitivo, solidário, dialógica, não competitivo – educar não é fazer do homem o lobo do próprio homem; seria o momento dos educadores lerem fora de suas jaulas, sobretudo os seus burocratas – “ler abre jaula”, defende a educadora pernambucana Adalgisa Leão Ferreira; seria o momento de denunciar a mcdonaldização da educação, com seu esquadro de calculabilidade, eficiência, previsibilidade e racionalidade padronizadas; seria o momento dos educadores se acumpliciarem com outros níveis de humanidade, com mais afeto, solidariedade, justiça social, democratização dos saberes fora das competências prêt-à-porter do capitalismo; seria o momento da educação se desencaixar da sociedade para produzir movimentos tectônicos nas certezas viciadas, superficiais, nos arremedos de conhecimento e na urgência dos imperativos de investimento-retorno-lucro.
Como no quadro de Magritte, seria bom parar, tirando os calçados dos hábitos daquilo que, até bem pouco tempo, imaginávamos ser verdade absoluta. Sob a iminência de um novo rosto surgir para a nossa condição humana, igualmente, não seria uma nova educação que precisaremos produzir para todos nós? Pensar leva tempo, responder também assim o deveria. Paremos, pensemos; sejamos menos apressados, pois viver leva tempo, assim como estudar, aprender e humanizar-se.
SupraVivente #JTI
Nenhum comentário:
Postar um comentário