A sociedade adora uma história de terror protagonizando crianças (como esta, ou esta, ou esta, ou esta…). Mas gosta ainda mais quando a história é baseada em acontecimentos reais.
Vira-e-mexe
eu recebo um link de uma reportagem ou artigo que fala sobre a maldade
infantil. É um clichê: começa com a “bomba” de que existem crianças más
(e a contraposição disso à suposta percepção reinante de que elas sejam
puras e inocentes), daí vêm referências a estudos que indicam que a
criança já nasce má e exemplos de manifesta maldade infantil, e, às
vezes, algumas palavrinhas de profissionais da área psi nesse sentido.
Enfim: tenham medo, pais, muito medo. Se vocês bobearem, vocês poderão
ser os próximos.
Mas o que é uma criança má? E o que é uma criança “boa”?
Eu concordo com a percepção de Alfie Kohn, autor de Unconditional Parenting: para o senso comum, a criança “boa” é a criança que não incomoda.
Pessoas
adultas incomodam o tempo todo – falam alto demais, se comportam de
forma que não é apropriada para o ambiente ou o momento em que estão.
Mas isso é considerado direito deles e só lhes acarreta sanções em casos
extremos. As crianças, em compensação, não podem fazer barulho, não
podem ter um dia ruim, não podem ter atendidas as suas necessidades de
movimento, de atenção, de cuidado, de brincadeira. As crianças têm que
se submeter. Por quê? Porque podemos fazer com que se submetam, claro.
As pessoas
gostam de falar como se o existisse de fato um “tabu da inocência
infantil”, e que ele protegesse indevidamente a criança, conferindo-lhe
alguma espécie de vantagem em relação à pessoa adulta. Um privilégio,
quem sabe.
Muito
ouço falar desse tal tabu, mas não vejo. A presunção de inocência que
eu conheço só existe para es adultes. Para as crianças, o que observo é
uma expectativa, uma exigência de inocência sobre-humana que, quando
frustrada, se transforma em prova de malícia intrínseca, ensejando as
mais cruéis punições. O fato de que, ainda hoje, em pleno século XXI, a
maioria das pessoas defende a violência contra a criança (seja física,
verbal ou psíquica) como algo necessário para a educação comprova isso,
especialmente quando analisamos a quantidade de situações em que esses
castigos se agravam a ponto de se causar lesões e mortes.
O que me
chama a atenção nesse tipo de artigo é que a informação de que há
crianças psicopatas não é passada de forma neutra. Ela é exposta de
forma sensacionalista, indiretamente apoiando a tese não só de que há
algumas raras crianças más, mas de que as crianças, como um todo, “não
são boas”. E daí para a reafirmação da antiquíssima (mas infelizmente
ainda em voga) noção de que elas são, portanto, todas más
(e que nos cabe torná-las boas através da punição), é um pequeníssimo
pulo, porque é dessa forma maniqueísta que o senso comum trabalha – ou é
tudo, ou é nada. Ou as crianças são todas puras e angelicais, ou são
todas demoníacas. É esta, aliás, a essência da “Pedagogia Venenosa” (Schwarze Pädagogik) denunciada por Alice Miller em seu livro For Your Own Good
– a ideia de que as crianças estejam inoculadas pelas sementes do mal e
nos caiba arrancar isso delas, mesmo que na base da violência.
De fato,
parece-me que o intuito de todos os textos desse tipo que eu, por
infelicidade, li, era, subliminarmente, embasar a punição das crianças
por sua suposta malícia, dentro da dinâmica de exigir o inexigível e
depois repudiar a realidade.
Mesmo em
relação a bebês com poucos meses de vida podemos verificar essa forma de
pensar. Ainda mais abundantes que os textos que falam da tão
horripilante maldade infantil são os que falam, velada ou
escancaradamente, da criança ainda muito pequena como um Rasputin em
miniatura, um ser maléfico e manipulador, que busca dominar os pais e
adestrá-los e que, portanto, devem os pais retribuir na mesma moeda (o
que não me pareceria uma atitude muito madura mesmo que eu acreditasse
na premissa de que ela parte).
Segundo essa
lógica, toda criança é um psicopata em potencial e cabe aos pais evitar
que esse potencial se realize, “impondo limites”. Não ensinando
princípios, não passando valores, mas impondo limites. Aparentemente, o
que queremos criar não são pessoas íntegras, mas pessoas limitadas. E é
bem isso o que sobra dessas crianças cuja “altivez” foi quebrada:
pessoas limitadas. Limitadas a reproduzir a violência que sofrem, a
obedecer quem lhes parece mais forte, a só reconhecer em si os
sentimentos que não forem vergonhosos, ou incômodos para outrem.
E
dizer que a criança é má porque nasce má, apesar de ser reconfortante
para os pais (“não é culpa nossa, já veio quebrado”), não é
necessariamente verdade. Ainda que haja pesquisas apontando evidências
de configurações neurológicas e genéticas que levam à psicopatia, há
também estudos que demonstram que o cérebro da criança é bastante
moldável a partir das experiências que ela vivencia. Veja aqui um artigo muito interessante a esse respeito.
Mesmo porque,
se o meio não tem influência sobre a criança, então não há “limites”
que resolvam o problema. Ou será que o meio é relevante o suficiente
para nos sentirmos justificados em nossas punições, e irrelevante o
suficiente para não nos responsabilizarmos pelees adultes que nosses
filhes se tornarão? Que conveniente.
Eu tenho para
mim que, ainda que nem todas as vítimas se tornem um dia algozes, todos
os algozes foram um dia vítimas. E talvez o que tenha acontecido com
eles sequer seja reconhecido como violência, de tão normalizado que
está. No livro que citei acima, Alice Miller demonstra muito
eficientemente a banalização, deslegitimação e silenciamento do
sofrimento na infância e suas consequências nefastas, usando como
exemplos Hitler e Christiane F., entre outros.
Isso quer
dizer que acho que não devamos responsabilizar as crianças (ou es
adultes que elas se tornam) pelos seus atos? Não. Isso quer dizer que
acho que não devemos usar a alegação de responsabilização das crianças
para nos escusarmos de reconhecer nossas próprias responsabilidades como
mães, pais, educadorees e, em geral, pessoas adultas que interagem com
crianças, queiramos ou não, porque elas fazem parte da nossa sociedade,
apesar de serem constantemente tratadas como cidadãs de segunda-classe.
Ninguém
pondera sobre as motivações dessas crianças que se tem tanta convicção
de serem tão más. O que leva, por exemplo (como num caso citado em uma
das matérias que vi), um menino a mentir sistematicamente para fazer com
que suas babás sejam despedidas? Talvez ele sinta que, assim, seus pais
terão que ficar com ele; talvez ele esteja rejeitando a presença delas
em sua vida, rejeitando a ausência dos pais. Não parece que deve haver
algum motivo para que uma criança esteja disposta a machucar a si
própria para se ver livre de alguém ou de alguma situação? Não seria
melhor tentar conversar com ele e entendê-lo, do que simplesmente
rotulá-lo de delinquente e puni-lo, só porque esta é a opção mais fácil e
confortável para os pais?
Ao invés de
lidar com o que ocorreu no momento, não seria melhor lidar com a causa
para isso, de forma a prevenir acontecimentos futuros similares?
Não.
A maldade começa e termina na criança. Nós somos grandes, elas são
pequenas. Não temos que nos reexaminar, não temos que repensar nossas
posturas, nossos atos, exemplos, palavras. Não temos que revisitar
nossos próprios traumas, analisar nossos desejos e temores.
Não temos que… e não queremos. Mas acho que devemos.
(copiado de https://leticiapenteado.wordpress.com/2014/05/07/a-crianca-ma/)
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